7x1 para o teatro
“Se depender de mim, Camila Damasceno, não tem Neymar nessa peça”, disse a dramaturga do Núcleo Tumulto!, que fez uma abertura de processo no Palco Praça do Instituto Brasileiro de Teatro com o espetáculo em construção “Resenha”. O grupo coloca no palco um estádio/estúdio, com duas cadeiras de praia e um cooler em cima de um retângulo de grama sintética no chão e na frente de um retângulo de tela verde que forma uma parede, que se transforma, através de uma câmera e duas televisões, em praias, bares, ruas, logos de casas de apostas, comerciais de chuteiras. Nessas mesmas telas aparecem frases icônicas sobre futebol, como uma de Nelson Rodrigues, “O pior cego é o que só vê a bola”, pedaços da animação do Zé Carioca com o Pato Donald, cenas pré-gravadas dos performers - Gustavo Braunstein e a própria Camila, única mulher de uma peça sobre futebol, que compartilha que sente-se enganada por querer “apenas escrever o texto” e acabar em cena, mascarada de carcará - e também trechos de entrevistas com jogadores falando sobre seus trabalhos.
A peça, dirigida por Fabiano Lodi, reflete o tempo todo sobre as relações de trabalho no futebol e no teatro. O Tumulto! insiste na perspectiva de que os jogadores de futebol são trabalhadores. Para isso, traz o exemplo de Marta que, mesmo tendo conquistado cinco Bolas de Ouro, não conseguia tirar mais que três mil reais de salário por mês; mostra Garrincha falando que não tinha a dimensão dos valores baixíssimos de seus contratos, e Sócrates que, por outro lado, reconhece que ganhava muito mais dinheiro que a maior parte da população brasileira, mas que ainda era pouco para o impacto cultural que provocava; e, por fim, a fala de Djalminha, que reivindica que o jogador de futebol da série D é tão jogador de futebol quanto quem joga na Europa.
“Resenha”, na verdade, não é sobre futebol. Não há, inclusive, nenhuma bola em cena. Gustavo também comenta sobre seu trabalho no teatro, trazendo as semelhanças que tem com os jogadores de futebol. Os atores também fazem publicidades e têm seus corpos como matéria-prima de seu trabalho. Mencionam o tempo todo sobre “Atacante”, processo do núcleo que teve abertura na Mostra Farofa de 2024 e que partia do futebol para falar sobre colonização, mas que não conseguiu seguir adiante por motivos de produção. Na ficção de “Resenha”, “Atacante” circulou por estádios de todo o Brasil e até internacionais, conquistando públicos de dezenas de milhares de pessoas, com vídeos projetados em telões gigantes pelo estádio e um globo da morte no centro do campo, tornando o grupo milionário e conhecido mundialmente.
Um dos momentos mais destacáveis de “Resenha” é quando os performers agitam a plateia, transformando-a em torcida. O público se levantou chacoalhando os grandes pedaços de tecido preto e amarelo que decoravam as arquibancadas, uma de cada lado do palco, encarando uma à outra. Todo o grupo tinha camisetas de futebol das mesmas cores, com o escudo do grupo do lado esquerdo do peito. Ao invés de patrocinadores, havia uma ilustração de um pulmão; ao invés do nome dos jogadores, estava escrito “Tumulto!”. Gustavo conta que recentemente os torcedores do Palmeiras foram chamados de “torcida de teatro”, já que não cantavam nenhuma música. Enquanto driblava adversários invisíveis, mobilizou a plateia a torcer pelo teatro. Camila cruzava o palco com uma placa escrito “olé”, puxando gritos da torcida, e depois, finalmente, o “gol”. Nessa altura, toda a plateia estava de pé, gritando a plenos pulmões sem tê-lo desenhado em suas camisetas, reivindicando o teatro em meio às placas do IBT: “teatro e água”, “aqui, tudo é teatro”, “teatro é direito”.
Outro momento que engajou o público - e tinha potencial para muito mais - foi uma conversa sobre hinos. Depois de cantarem o hino do Corinthians, perguntam para a plateia se alguém conhece alguma música de time fora do Sudeste, mais desconhecido. Puxam alguns, o do Juventus, do Grêmio, mas a vontade geral foi de cantar o hino do seu próprio time. E junto com os cantos, surge uma reflexão bonita: de onde vem a sua torcida? Um santista da plateia respondeu que veio da torcida de seu pai e Camila contou que passou a ser flamenguista depois de se encantar com Leovegildo Júnior, e acrescenta que adoraria tomar uma cerveja com ele. Então aparece Gustavo com uma máscara tosca de papel com o rosto de Júnior e realiza o desejo de sua colega de cena. Os dois tomam mais uma Stella Artois nas cadeiras de praia.
O Núcleo Tumulto! conquista pelos efeitos cômicos construídos na própria estrutura de cena. As críticas elaboradas chegam através de piadas toscas. Dancinhas de tiktok, vídeos do GTA, xingamentos sobre o time do outro. A resenha, às vezes, se perde pelas idas e vindas de assuntos e personagens e talvez seja valoroso demarcar com mais afinco a situação fundamental da peça. Ao mesmo tempo, é admirável a capacidade de recorte frente a um universo tão amplo quanto o do futebol, assim como a competência do grupo em oferecer uma experiência para o público. Os aplausos foram de pé, não só pelos códigos sociais do teatro, mas porque a plateia estava doida para pular nas arquibancadas e gritar novamente na torcida pelo teatro. Um gol do Núcleo Tumulto!