"Cíclico" e incontáveis voltas em torno do baobá

A escola de samba vencedora do carnaval do Rio de Janeiro de 2024 foi a Unidos do Viradouro, que usou o símbolo da serpente vodum. Essa representação surge no território que atualmente é o Benin. É uma cobra que morde a própria cauda, gerando um circuito fechado e representando continuidade e sustentação. Outro símbolo semelhante que surgiu na África é o ouroboros, cujo primeiro registro foi encontrado no túmulo de Tutankhamun. Ele significa o movimento e a constante evolução da vida. Ainda, todas as pessoas que viveram 2012 se lembram do calendário Maia e de um possível fim do mundo naquele ano. Essa civilização pré-colombiana tinha uma concepção cíclica do Cosmos. Tudo isso para dizer que as temáticas abordadas por Gabi Costa em “Cíclico” são bastante pertinentes, atuais e bem fundamentadas.

Ao entrar no teatro, o público é recebido por diversas mulheres, toda a equipe técnica feminina do espetáculo, vestidas de branco em volta de uma estrutura no meio do palco circular. É uma estrutura de gavetas de vidro com um baobá em cima. Ao longo da peça, a personagem encontra nos compartimentos balões de festa, pratos e copos de papel para um chá revelação, luzes pisca-pisca, taças de acrílico bege, - que a deixam muito incomodada - plantas de verdade, que são rapidamente descartadas porque ela só trabalha com “plantas de plástico”. 

A personagem organiza um evento que a todo momento “começará daqui a pouco”. Ela narra histórias de festas que organizou. “Cada evento tem uma textura, um clima, uma nuance”. A atmosfera construída é bem-humorada, divertida e com bastante interação com a plateia. Em alguns momentos, sempre quando se escutam batidas na porta do teatro, a iluminação muda, a quarta parede se fecha e a personagem revela-se outra. Ela fala rápido, respira pouco. Está assustada rememorando cenas de violência contra mulheres que aconteceram em festas, como quando viu uma menina escondida debaixo da mesa para fugir da violência dos homens da família. Logo depois, no outro plano, a personagem que organiza festas reforça que a mesa é sempre a atração principal de qualquer evento. 

As duas camadas dramatúrgicas se complementam para contar a principal narrativa: o caráter cíclico da violência sofrida pelas mulheres da família da atriz. “Quantas voltas em torno do baobá são necessárias para apagar as feridas?” Gabi dá voltas ao redor da árvore e dá vontade de assistir uma relação mais intensa entre as duas. A personagem, que se confunde com a atriz nas suas memórias, demonstra ódio por ter “errado” e não conseguir sair do ciclo da violência contra a mulher. Ela várias vezes fala da impossibilidade do erro por parte das mulheres, como quando faz um relato de uma mulher em uma festa que, ao invés de ter um “corpo de festa” comum, feliz, expandido, tinha um corpo tenso e com medo de errar porque seu marido tinha bebido mais do que deveria. O tema da dependência química aparece mais de uma vez, muitas vezes vindo de figuras masculinas, e menciona diferentes drogas. Ela apresenta o caráter violento, frequentemente escondido, das festas que presencia. 

Em “Cíclico”, talvez há mais elementos do que a narrativa precisa para ser contada, que contém temáticas pertinentes, atuais e bem fundamentadas. Afinal, há muitas referências de cosmovisões cíclicas, como o calendário Maia, que se popularizou em 2012, com uma suposta previsão do fim do mundo; ou como o ouroboros, símbolo encontrado por primeira vez enterrado junto a Tutankhamun e simboliza o movimento e a constante evolução da vida; ou, em uma situação geograficamente mais próxima do Teatro de Contêiner, o símbolo da serpente vodum que traz a ideia da continuidade e sustentação utilizado pela Unidos do Viradouro, escola de samba vencedora do carnaval do Rio de Janeiro de 2024.

Ficha técnica:

“Cíclico”

Atuação, Concepção e Dramaturgia. Gabi Costa

Direção. Mariá Guedes e Thais Dias

Preparação Corporal. Ciça Coutinho

Trilha Sonora. Camila Couto

Cenário. Evas Carretero

Iluminação. Danielle Meireles

Figurino. Thais Dias

Adereços. Gabi Costa e Mariá Guedes

Designer Gráfico. Luna Ákira

Fotos. Cléo Martins

Equipe Técnica e Operação de Luz e Som. Carolina Gracindo, Camila Couto e Julia Orlando

Cenotécnica. Jaqueline Soares e Evas Carretero

Colaboração Artística. Meg Pereira

Direção de Produção. Gabi Costa

Produção. Leo Devitto - Corpo Rastreado

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