Como será que começa da próxima vez?

Como foi que eu comecei da última vez?
No espetáculo “Asas para Ana C”, Cris Rocha dirige, escreve e atua uma “biografia poética não autorizada”, como ela mesma coloca, sobre a vida da poeta Ana Cristina César, um dos principais nomes da poesia marginal. Ana Cristina, Ana C ou simplesmente Ana era uma mulher lésbica carioca que fez parte do que se conhece como geração mimeógrafo, formada por artistas que estavam à margem do circuito editorial brasileiro e que encontravam outras formas de publicar seus textos. “A teus pés” é o seu único livro lançado em vida por uma editora, em 1982, um ano antes de decidir jogar-se da janela do sétimo andar do apartamento dos pais, um edifício na rua Toneleros, em Copacabana. A homenagem é tecida por Cris - aqui, do verbo “tecer”, como um grande, cuidadoso, colorido e detalhado tecido - na tentativa de criar asas, de fiá-las, de entrelaçá-las, para que o vôo da poeta não aterrise em uma brutal queda.
Como foi que eu comecei da última vez?
No início do espetáculo, Cris repete essa pergunta e dirige-a ao público na tentativa de rememorar o que aconteceu na última apresentação. Entre uma pergunta e outra, ela afirma que a memória impede, atrasa, impossibilita a morte. É claro que aqui ela refere-se à importância de homenagear Ana Cristina, mas também pode-se relacionar com uma tentativa de impedir a morte da apresentação anterior e manter o espetáculo vivo. Construir a memória e criar asas para as “Asas de Ana C”.
Como foi que eu comecei da última vez?
O espetáculo faz uma “proesia” e encontra muitas maneiras de trazer a poesia da obra e da vida de Ana para os palcos. Cris materializa as palavras pelo espaço e dança delas, com elas e para elas. Bebe saquê, como era do paladar de Ana, usa roupas muito bem acertadas da década de 80 e faz uso de muitos óculos de sol, referenciando e intensificando o retrato mais famoso da poeta. Ela joga envelopes vermelhos ao público com fragmentos poéticos e também abre grandes rolos de papel por todo o palco. Os papéis são preenchidos com palavras e desenhos, que depois são rasgados, amassados, e feitos de vestimenta - aqui, fica ainda mais evidente a relação de intimidade com seu público, quando pede para que alguém da plateia acomode o papel que está vestindo.
Como foi que eu comecei da última vez?
A todo momento, há uma interação da atriz com o público muito particular. Nota-se o cuidado e o carinho ao relacionar-se com os espectadores, provocando uma atmosfera amigável no teatro, e também com as intérpretes de Libras, abraçando a poesia de outra linguagem que também ocupa o palco e que costuma ser deixada de escanteio. A atriz procurava no público as particularidades de cada um, buscando ter uma interação valiosa e verdadeira com as pessoas presentes. Como ela mesma cita, “amar é a arte do garimpo”.
Como foi que eu comecei da última vez?
Há uma imagem de Cris deitada entre os dois grandes rolos de papel em branco, quase esperando para serem preenchidos, ou como se os três estivessem em pé de igualdade. Três folhas em branco esperando para serem preenchidas. A fala que vem a seguir traz uma dimensão política à poesia: “por muito tempo, para as mulheres sobraram apenas os caderninhos”. As mulheres que escreviam até pouco tempo atrás - em muitos lugares do mundo, até hoje - deveriam contentar-se com os papeizinhos, os bilhetinhos, as canetinhas, todas guardadas dentro de gavetinhas em quartinhos. Tudo o que era escrito por uma mulher deveria ser acompanhado por vários -inhos.
Como foi que eu comecei da última vez?
A atriz, por fim, destaca a característica do “irrepetível” que fundamenta o teatro. Deixo, então, uma lista de coisas irrepetíveis que aconteceram na noite chuvosa do nove de agosto no Teatro do Contêiner, entre as 20h30 e 22h:

  • Um senhor com uma Heineken ofereceu a bebida para a atriz, que negou dizendo estar em serviço. Ele também estava em serviço;
  • Em um momento do espetáculo, a atriz oferece uma câmera Polaroid à alguém e pede para que essa pessoa do público fotografe a cena. O homem escolhido tirou cinco fotos, o que causou risos e uma preocupação de não ter mais filmes na câmera;
  • No momento em que a atriz pronunciou a palavra “derramando”, uma gota de água da chuva - a primeira a realizar tal feito - atravessou o telhado e deitou-se sobre o chão do palco;
  • Apesar da abundante água que caía do céu, um incêndio começou no edifício ao lado nos últimos minutos de espetáculo. Não era só o palco do Contêiner que pegava fogo.

P.S: Só entre se estiver com o coração aberto e puro. Lembra as minhas palavras uma a uma e não me esquece mais.

Ficha técnica:
“Asas para Ana C”
Concepção, direção e atuação: Cris Rocha
Dramaturgia sonora (ao vivo): Nina Blauth
Diretora assistente: Zi Arrais
Dramaturgia: Cris Rocha e Rafaela Penteado
Dramaturgia corporal: Janette Santiago
Direção de Arte: Renato Bolelli Rebouças
Adereços (barco e cadeiras): Zé Valdir Albuquerque
Provocação cênica: Georgette Fadel
Iluminação e fotografia: Felipe Stucchi
Vídeo: Mada Rocco (edição de Bruno Garcia)
Produção: Corpo Rastreado
Produção executiva: Nathalia Christine

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