Costurando um teto com retalhos

Virgínia Woolf, em um ensaio publicado em 1929 na Inglaterra, disse que “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio se quiser escrever ficção”. Jéssica Barbosa faz uso desse pensamento da escritora britânica e o atualiza para a realidade brasileira, com mais consciência de classe. “Em busca de Judith” é a procura por uma história que não foi registrada; é, dentre outras coisas, uma reivindicação pela importância de escrever. A peça encoraja as pessoas, especialmente as mulheres negras, a escreverem em todo lugar: esperando o ônibus, lavando os pratos, independentemente do teto que paira sobre as cabeças.
“Minha avó não teve uma casa, mas tinha uma máquina”. Jéssica, em seu solo, relata sua busca pela história de Judith, sua avó paterna. Aos 32 anos, ela encontrou uma fotografia de Judith dentro de um livro e começou a desconfiar da versão que haviam lhe contado sobre a história de sua ancestral. Jéssica não mais acreditava que ela tinha morrido em um acidente de carro. A desconfiança e a curiosidade a fazem iniciar uma jornada de descobertas sobre sua família e ancestralidade. Ela descobre que quando seu pai tinha quarenta dias de idade, sua avó foi diagnosticada com uma doença mental - o que talvez seria lido hoje como uma depressão pós-parto - e foi internada em um hospital psiquiátrico no norte da Bahia, onde morou pelos próximos treze anos. Judith viveu mais de uma década costurando em sua máquina, recebendo eletrochoques e sem saber que sua família lhe enviava diversas cartas, que nunca foram entregues.
Quando Judith recebeu alta, ela voltou à Jacobina, sua cidade natal, e não foi autorizada a ver seus filhos. Ela, então, decide retornar ao hospital, desta vez para trabalhar como costureira. Judith, então, permaneceu na instituição até o final de sua vida. Jéssica costura uma dramaturgia que reflete seu processo de criação; é uma construção de retalhos. Misturam-se elementos sobre a busca pela história de sua avó, como quando sua tia repete “o que é que essa menina sabe da vida pra ficar falando assim da vó”; junto a própria narrativa da vida de sua avó, como quando Judith vai à Salvador e um refletor esquenta e ilumina diretamente o público, obrigando os espectadores a fecharem os olhos com a mesma violência do sol da capital baiana; e também com reflexões sobre a saúde mental e a luta antimanicomial, como quando Jéssica canta: “Não esquece que o doente de repente é uma pessoa”.
Assim como Judith, o espetáculo não dá ponto sem nó. Nota-se um trabalho dramatúrgico por parte de todas as visualidades. O figurino que Jéssica usa na maior parte do espetáculo é feito de retalhos, assim como a história que ela conta. A cenografia é formada por diversos cubos de diferentes tamanhos cercados com arame. Dependendo da configuração, e junto a um trabalho meticuloso de iluminação, os cubos representam, dentre outras coisas, uma grade de prisão, um carrinho ou uma mesa para apoiar a máquina de costura - que, inclusive, foi a única ausência do espetáculo. Por ser tão central na narrativa, a presença de uma máquina de costura de verdade seria impactante e significativa, ao invés de sua representação produzida com outros materiais. A música também comunica bastante em “Em busca de Judith”. No palco, Jéssica é acompanhada por dois músicos que tocam percussão e guitarra, e ela mesma toca instrumentos em alguns momentos. Há partes do texto que viram música e há partes das músicas que viram texto.
Por fim, depois dos aplausos, Jéssica ainda propõe reflexões: qual é o espelho do território que envolve o teatro dentro da cena? Como uma peça que reivindica a luta antimanicomial permite ser atravessada pela realidade do lado de fora? Ou, ainda, como a discussão proposta dentro da cena é capaz de reverberar fora dela? Jéssica Barbosa transforma o Teatro de Contêiner em um teto todo de Judith e, junto ao público, costura uma colcha de retalhos para homenagear a sua ancestralidade.

Ficha técnica:
"Em busca de Judith"
Idealização - Jéssica Barbosa e Pedro Sá Moraes
Direção, roteiro e trilha original - Pedro Sá Moraes
Com - Jéssica Barbosa, Muato e Alysson Bruno*
Direção de movimento, assistência de direção e preparação corporal - Leandro Vieira
Supervisão de Direção Teatral - Fabiano de Freitas
Desenho de luz - Fabiano de Freitas
Mapa e operação de som - Pedro Sá Moraes Com Jessica Barbosa
Participação especial (vozes “off”) - Léa Garcia, Veranubia Barbosa, Arlindo Oliveira, Juracy de Oliveira, Fabiano de Freitas e Pedro Sá Moraes
Dramaturgia - Jéssica Barbosa e Pedro Sá Moraes
Supervisão Artística - Joel Pizzini
Diretora de Arte - Ana Rita Bueno
Figurinista - Cris Rose
Costura e Moulage - Juarez Souza de Oliveira
Visagismo e Maquiagem - Diego Nardes
Assistente de Visagismo e Cabelos - Lucas Souza

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