E o verbo se fez carne

No caminho entre a porta do teatro e os assentos da plateia, o palco. Em seu centro, uma estrutura alta, que atravessa os três andares, com duas grandes televisões de plasma e outras várias televisões pequenininhas de tubo. No topo, câmeras de segurança distribuídas em um círculo que observam a totalidade do espaço. Assim como “Babel”, escultura de Cildo Meireles, essa instalação já nos coloca de cara frente à uma cacofonia de imagens e um encontro caótico de telas que não se comunicam. 

“O Auto do fim do tempo”, nova peça do Teatro Manás Laboratório e a primeira montada em sua sede própria, traz uma sequência de doze episódios inspirados pelo cotidiano que revelam os tempos apocalípticos contemporâneos que se aproximam de sua finitude.

Cada cena é um coro, formado pelos três atuantes: coro das carnes, coro da culpa, coro do tribunal, coro da morte e por aí vai. Os títulos são revelados ao público tanto no programa, quanto nas televisões, acompanhados por um recorte do quadro “O Jardim das Delícias”, de Hieronymus Bosch. A obra foi feita no fim da Idade Média e também traz um encontro caótico de figuras bizarras, porém humanas, completamente entregues aos prazeres da carne. 

Talvez seja por isso que o diretor Dante Passarelli referencia o versículo João 1:14 e diz que “A palavra (verbo) é corpo (carne). Esta é uma jornada pautada nos sentidos para além do intelecto, isto é, trata-se de uma jornada visual, auditiva e simbólica. Aqui, os atores representam menos do que funcionam fisicamente - e é dessa função sensorial que emerge a narração das cenas”.

Entre o Jardim do Éden e o Inferno, “O auto do fim do mundo” traz um mundo corrompido pelo pecado e o inevitável sofrimento póstumo. As referências bíblicas iniciam-se no próprio título. Os atuantes estão o tempo todo por entre maçãs, jogadas no espaço cênico térreo na primeira cena - o uso do espaço, inclusive, é um dos aspectos mais interessantes da encenação. Acompanhamos os atuantes subindo e descendo escadas em diferentes distâncias que fazem parte da própria estrutura do teatro. 

Vemos cabeças sem corpos falando do canto direito, no terceiro andar do teatro. Toda a atmosfera da encenação gira em torno do sombrio; a contraluz valoriza as silhuetas escuras, a trilha sonora acompanha o perpétuo sofrimento do coro que narra, muitas vezes em monólogos. A atmosfera, junto com as ações que propositalmente não têm a ver com o que está sendo dito, tiram os temas de seu cotidiano e se tornam mais interessantes do que os textos, que no papel despertavam sustos e risadas. 

É importante reivindicar as sedes dos grupos de teatro e frequentar as suas programações, que costumam se manter apenas com o lucro da bilheteria. Tem mais a ver com a ética dos grupos pagar 25 reais em um ingresso de um teatro de rua do que doar 25 reais para o monopólio do SESC. 

Igualmente importante são os espaços para pensar e debater dramaturgia, como é o caso do Laboratório Aberto do Teatro Manás Laboratório que acontece uma vez por mês e também dos piquetes da plataforma de ações da palavra Urgia, que são semanais. Fernanda Zancopé tirou o texto guardado há anos na gaveta para levar aos dois eventos e assim redescobriu os desejos que tinha com “O auto do fim do tempo”. A peça fica em cartaz todas as segundas e terças até dia 4 de novembro. Tempo sem fim; não tem desculpa para não assistir.

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