"Lídima": germinações que chegam à canoa

O teatro escuro. Por alguns instantes, a única luz em cena é o vermelho e azul de uma viatura, estacionada em frente ao teatro. O território conversa logo nos primeiros minutos com “Lídima”, abertura de processo de Silvana Farias que é um manifesto pela sua emancipação. O corpo de mãe se reivindica como mulher; o corpo indígena se reivindica como aldeia. Aos 49 anos, Silvana se redescobriu como uma pessoa desejável e com pulsão de vida e decidiu tentar algo diferente: teatro.

“Lídima” começa em um palco com poucas luzes e bastante silêncio. Silvana expande gestos pelo espaço - toma chá quente, chora como um bebê, empurra um tronco. A repetição leva à exaustão, em uma daquelas coreografias em que o objetivo é descoreografar, é conscientizar o movimento, é deslocar as expressões do cotidiano e problematizá-las. Ela traz memórias do que identifica como um “corpo que serve”, que é, por exemplo, descobrir apenas de adulta como prefere a temperatura de seu café, já que a bebida que preparava sempre era para outra pessoa. 

Depois dos cinquenta anos, ao relacionar-se com outro homem e redescobrir seu corpo como objeto de desejo, ela percebe que a opressão não tinha ido embora com seu ex-marido. A violência também vinha de seus filhos, todos os sete, que estavam presentes na abertura de processo e contribuíram para a instauração de uma atmosfera íntima e cheia de carinho durante a apresentação. Silvana não nega seu papel de mãe, senão reconhece seu lugar como mulher para além de seus filhos. “Tenho um ventre de milhares de sonhos”. Ela se dirige à seus filhos que, estando todos na plateia, se misturam com o público do teatro: “Vocês são povo em pé. Árvores que povoaram esta terra”. E ainda pede que cantem e dancem. 

Além da opressão no ambiente doméstico, Silvana também traz em seu discurso a experiência de ser uma mulher indígena no Brasil. Não quer mais ser vista como um corpo garimpado. “Não vou vestir roupas de viúva”, ela diz em um dos momentos mais impactantes da peça. Ela tira o figurino de algodão que vestia até então, uma camisa de manga longa e uma saia que chegava até seus tornozelos, e revela trajes indígenas amarelos, de macramê e miçangas que deixam seu corpo à mostra. Seu corpo é aldeia. Silvana narra a libertação de uma opressão na perspectiva do cotidiano, através de pequenas conclusões do dia a dia, como perceber que “um dia de sol não serve só para lavar roupas” ou, ainda, que “não” é uma frase completa. Ela serve chá ao público e declama: “A morte de um delírio que veio à caravelas. Deixo este balaio de germinações que veio à canoa”. 

Em um momento sensível da peça, a mulher quebra a quarta parede e fala com o público sobre o processo de criação sem deixar a poesia de lado. Silvana expõe que a personagem é uma crise: ela gostaria de ser outras, mas acaba sempre encontrando todas dentro de si. Esse corpo, então, manifesta-se inevitavelmente coletivo. E o que fazer com esse corpo que transborda? Que é um corpo de mulher, que faz teatro, que é desejável, que é aldeia, que é muitos? Silvana segue o conselho que deu aos seus filhos e dança. A abertura de processo termina, então, com uma perspectiva romântica de uma mulher de 54 anos que está redescobrindo a vida e que sabe que ainda tem muitas peças por estreias e muitos pontos de cabocla por dançar. “Pra ver a força que a Jurema tem, pra ver a força que a Jurema dá…”

Ficha técnica:

“Lídima”

Atuação: Silvana Farias

Direção e Iluminação: Rodrigo Silbat

Dramaturgia: de Rodrigo Silbat para Silvana Farias

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