Nem tudo é ficção

O espetáculo que abriu o Encontro de Teatro Universitário (ETU) de 2025, comemorando os seus dez anos, mostra em cena o processo de produção de um bolo. A celebração começa ali, na primeira noite do festival, com “Savana glacial”, da Cia. Gelo Seco. A peça surgiu no segundo semestre de 2024, na disciplina Ateliê II, que faz parte do currículo obrigatório da graduação em Artes Cênicas da USP, e teve sua primeira abertura no TUSP Butantã, ao final do ano. Com o desejo de continuidade, novos artistas se uniram ao grupo e fizeram diversas apresentações no ano de 2025, como no Festival Pé Dentro, Pé Fora, na Casa Livre. Ao ETU, no Teatro Reynuncio Lima, no Instituto de Artes da Unesp, chegam como um dos trabalhos mais sofisticados do festival pela sua busca por linguagem e discurso que, apesar de suas contradições, encontram-se em um caminho sólido. 

A história gira em torno de um casal heterossexual que acaba de mudar-se para um apartamento novo após um episódio que fez a mulher perder a memória. Michel, escritor, não permite que a esposa saia de casa, que passa seu tempo cozinhando bolos para vender. Ela carrega um bloco de notas com informações escritas pelo marido; tudo o que ela precisa saber está lá. Uma vizinha do prédio, Ágatha, invade a vida do casal. Ela é tagarela e cheia de energia, diferenciando-se rapidamente da sofisticação arrogante dos dois. Primeiro chega ao apartamento deles com o pretexto de ajudar Meg a recuperar sua memória e descobrir a verdade que o marido lhe está escondendo; depois, revela ter interesses amorosos por Michel. Savana Glacial é uma dramaturgia de 2010 escrita por Jô Bilac em um processo colaborativo na Cia. Físico de Teatro. 

Na montagem da Cia. Gelo Seco, um dos grandes destaques é a banda ao vivo formada por quatro instrumentistas e uma vocalista, que acompanha toda a peça, sentados em uma arquibancada entre as duas pilhas de caixas de papelão do apartamento do casal. Há uma mesa do escritor, com uma máquina de escrever e um telefone fixo - indicações da escolha do grupo pela temporalidade da história, que não é definida na dramaturgia - e uma porta móvel do apartamento, que a cada cena cria enquadramentos e comicidades diferentes para a espacialidade ficcional das personagens. Quase tudo se passa dentro do apartamento. Por isso, um dos destaques da encenação é a cena de Michel e Ágatha fumando na frente do prédio, demarcado apenas por um guarda-chuva aberto e pela iluminação baixa, que indica que estão, agora, em um lugar aberto. 

Uma das espinhas dorsais do texto de Jô Bilac é a reflexão sobre o desejo do artista: “a boa ficção vem do desejo do escritor”. Ridiculariza o virtuosismo do escritor, que escreve com dor, solidão e intelectualismo exagerado; continua a pensamento através da história de Simone, a amiga de Ágatha que foi presa após beijar um quadro em um museu por ter se sentido extremamente atraída por ele; e encerra a peça com o Michel não percebendo suas próprias contradições em relação ao casamento com Meg ao dizer que “De tão sagrado, o amor vira peça de museu, e cabe ao outro a contemplação apenas.” Jô Bilac insiste em argumentar que o artista deve alimentar e perseguir os seus desejos, o que torna-se ainda mais importante ao acompanhar a programação do ETU e deparar-se com grupos que não parecem ter muita carga libidinal direcionada à pesquisa da linguagem teatral, apesar do teatro ser universitário.

Em cena, no entanto, o discurso é oposto ao de Jô Bilac. A cenografia de uma casa desarrumada tem suas caixas ordenadas, limpas e simétricas - até a caixa com vidro tem os cacos colados e arrumados com perfeição; o jazz que acompanha as emoções das personagens - de excelente qualidade - não deixa de ser melódico nem nos momentos mais violentos entre marido e mulher; os figurinos são elegantes, limpos e bem-passados. Os momentos de loucura, que também servem de transição, com repetições de movimentos e falas, flashbacks de cenas e mudanças bruscas de luz, não descem do salto alto. Acontece o que parece ser uma ironia acidental, em que o texto crítica a encenação, que foi tecida com visível esmero.

O recorte dramatúrgico realizado pela Cia. Gelo Seco descomplexifica a trama. Na montagem, não há dúvidas de que Michel está abusando de Meg e escondendo a existência de seu filho Max. Ágatha aparece como uma personagem simpática e divertida, decidida a ajudar essa mulher a recuperar sua memória e que, ao longo da peça, com uma ausente compreensão total de suas motivações, trai Meg, aproveitando-se de sua condição mental, e começa a desenvolver uma relação com Michel. No texto, porém, a confiabilidade de Ágatha é posta em dúvida desde o primeiro momento, já que logo no prólogo ela apaixona-se por Michel andando na rua, fora de casa. É uma das poucas interações que acontecem fora do apartamento do casal. Não se sabe o quanto de verdade há em Ágatha - em um momento central da dramaturgia, que pede mais ênfase na encenação, revela que teve um cachorro chamado Max, o mesmo nome do suposto filho dos vizinhos. Ela não revela nenhuma informação sobre o filho, mesmo após Meg pedir insistentemente. 

No texto, nenhuma das personagens é confiável em nenhum momento. Meg por perder a memória, Michel por seus momentos de violência e por ser posto em dúvida por Ágatha, e Ágatha, por sua vez, por ter interesses controversos com o casal. Assim, Savana Glacial é uma dramaturgia com camadas filosóficas que vão além da violência doméstica e aterrissam na parresia, a coragem da verdade singular, aquela que é atravessada pelas fantasias dos sujeitos. “Tudo aqui é ficção”. A questão central não parece ser as informações ausentes ou confusas da memória da mulher, senão a disputa de narrativa entre todas as personagens. Um escritor que, ao escrever a sua esposa, apaga a si mesmo; uma vizinha intrometida com súbito interesse em ajudar. “O personagem em busca de um personagem em busca de um personagem…” Quem assiste a Cia. Gelo Seco encontra-se com certezas demais quando compara-se com quem lê Jô Bilac. 

Ao final, até os problemas de memória de Meg são postos em dúvida - no texto e também na montagem. Ela conversa com Nuno, o motoboy que entrega os seus bolos, a única relação que tem que não é mediada pelo marido, e é capaz de lembrar-se de tudo. O motoboy é uma figura curiosa. Ele invade a cena em todo o transcurso da peça, mudo. Observa as brigas e os beijos do casal, habita às vezes o apartamento, às vezes a imaginação de Meg. Ele é a personagem que está fora do prédio e da disputa de narrativas instaurada pelo triângulo amoroso. A peça ainda tem uma camada essencial de metateatro, que é ainda aprofundada pela Cia. Gelo Seco, especialmente pelos cacos de Ester Kariny, que faz a vizinha tão divertida a ponto de ser querida pelo público mesmo com as suas controvérsias. Michel em um momento diz que estão na cena seis, Ágatha cita o nome de outras peças do Encontro de Teatro Universitário ao nomear esmaltes, e ainda, quando conhece o apartamento, surpreende-se com a presença da banda dentro da casa. 

“Savana glacial” ficou marcado como um dos destaques do público, pelo o que consegui escutar pelos corredores e filas de espetáculos da Unesp, da Usp e também da Unicamp. A Cia. Gelo Seco consegue ser um dos poucos grupos que faz jus ao espaço da universidade e se propõe à experimentação e à pesquisa, fazendo mudanças a cada apresentação e tendo dedicação à cada elemento da cena teatral. O grupo se apresenta nos dias 13 e 14 de agosto no Tusp Maria Antônia, como parte da programação da primeira Mostra Nacional de Teatro Universitário. Dá vontade de ver no palco um gelo mais derretido, uma secura com mais fumaça, com menos elegância e compostura e mais rock and roll. Os atores dizem repetidamente que “Todo ato criativo é uma declaração de guerra”. Qual é a guerra que a Cia. Gelo Seco quer declarar?

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