Ode às noites piqueteiras das segundas-feiras

“Piquete é quando a gente para o fluxo de trabalho e se mobiliza para pensar o trabalho”. Essa é a definição que a Urgia traz em suas redes sociais para divulgar sua ação que ocorre às noites das segundas-feiras, em São Paulo, desde a última semana de setembro de 2024, na sede da Corpo Rastreado. O grupo é carioca, formado em 2023 por pessoas que escrevem para o teatro e se denomina como uma plataforma de ações em dramaturgia. “Somos um grupo de gente, são mãos de carne que escrevem aqui. No IAs allowed.” O piquete é uma ação que se propõe a ler e debater dramaturgias que ainda estão em processo de escrita. Os primeiros aconteceram no Espaço Desterro, na Glória, no Rio de Janeiro. Na Vila Madalena já foram lidas e debatidas 12 dramaturgias, até o momento de escrita deste texto.

Funciona assim: os textos são projetados. Uma roda de pessoas se forma em frente a ele. Algumas lêem as personagens, outras escutam. Ninguém que já leu o texto anteriormente pode ler no piquete. Quem escreveu não pode dizer nada antes de compartilhar o texto, apenas opinar na divisão de vozes. Depois, os autores são os convidados a abrir o debate, compartilhando também suas intenções, objetivos, dúvidas e inseguranças. E depois começa uma discussão tímida, que costuma se tornar acalorada rapidamente. Algumas pessoas colecionam anotações em blocos de notas analógicos e digitais, outras interrompem e mais outras são interrompidas. Os corpos se inclinam nos pequenos banquinhos, os autores se apressam para registrar tudo o que é dito. A leitura silenciosa e as falas barulhentas são atravessadas pelo som satisfatório da abertura de latinhas de cerveja. É através delas que a ação consegue um financiamento para a Mostra Urgia, que já aconteceu no Rio e que chega à São Paulo em março, como parte da programação da mostra da cena off da cidade, a FarOFFa. 

Apesar do telão ser na verdade um lençol, ele não carece de tecnologia e sofisticação. Os textos que nele pousam são extremamente ricos para quem gosta de pensar teatro. Os temas e os formatos são livres; já passaram diálogos em pajubá, debates sobre privatização de fábricas, imigração japonesa e italiana no Brasil e transtornos alimentares, dentre muitos outros assuntos. Já foram projetados textos dramáticos, com ou sem rubricas; grandes narrativas e também curtos programas performativos. Frequentar o piquete é fazer parte do grupo de estudos mais divertido e instigante para quem quer se propor a refletir sobre os limites da dramaturgia. Alguns textos trazem a continuidade de anos de pesquisa, outros se destacam por ter investigações frescas e recém-iniciadas; alguns são de pessoas que dedicam todo seu tempo no teatro a escrever, outros de pessoas que escolhem também se dedicar à atuação, direção e mais inúmeras funções; alguns são escritos em um processo em comunhão com outros artistas, outros em solidão, que é exatamente com que o piquete procura romper. 

A ação da plataforma Urgia coletiviza o trabalho da dramaturgia e permite que os textos sejam dissecados, rasgados e analisados por inúmeras pessoas que, escritores ou não, espectadores de teatro ou não, familiarizados ou não com o terraço da Corpo Rastreado, decidiram sair de suas casas em uma segunda à noite para conversar sobre dramaturgia. Existe uma poesia enorme em um texto que é lido pela primeira vez em coletivo por vozes curiosas e ouvidos generosos. O único fator comum entre os textos é que eles estão todos sendo produzidos no momento presente em São Paulo. Todos eles refletem alguma urgência da cidade de hoje e carregam a esperança de um futuro em que são finalizados e encenados nos mais lindos teatros. O piquete é um anúncio do que vai vir nos palcos, é uma possibilidade de acompanhar a germinação das pesquisas dos artistas de teatro da cidade. É como estar recebendo spoilers dos Guia Off que estão por vir. 

O piquete também cria um outro imaginário para o trabalho da dramaturgia. O dramaturgo é imaginado em sua maioria das vezes no masculino, branco, com barba grisalha, em uma grande mesa de madeira, contemplando uma paisagem inspiradora e escrevendo frases brilhantes sem parar. Esse dramaturgo não precisa de um coletivo para opinar e debater a sua obra, apenas um único editor basta. Esse dramaturgo sofre em meio a livros de teóricos cuja aparência se assemelha à dele e não imagina que poderia fazer esse trabalho em outra posição que não sentado em sua chique cadeira de couro. E também não se encaixaria na atmosfera alegre instaurada no piquete, regado a risadas e cerveja, ou na estética dos cartazes de divulgação, inspirado no “Brat”, de Charli XCX, álbum de pop eletrônico que marcou a cultura pop e LGBT em 2024. O piquete agora vira tema de pesquisa da tese de mestrado na UFRJ de Lane Lopes, uma das fundadoras da Urgia. Ela é uma mulher jovem, engraçada, fiel à sua camisa do Voltaço e costuma ser a pessoa que mais se encanta com os textos apresentados. 

Assim como ela, a maioria dos dramaturgos e dramaturgas que levaram seus textos ao piquete também não combinam com esse padrão do nosso dramaturgo imaginário. O mais legal é que a ação funciona sem curadoria. Quem tiver interesse em participar, pode enviar uma mensagem nas redes sociais e possivelmente ser convidado. A única prioridade é para quem já foi a algum piquete anteriormente. Além de Lane, há outros personagens que frequentam e recebem os leitores/espectadores/debatedores. Diego Cardoso, dramaturgo que teve seu texto exposto no telão da Urgia e que também criou diversos podcasts que pensam dramaturgia; amilton de azevedo, crítico do ruína acesa, casa crítica que integra o projeto Arquipélago, é quem costuma ler as rubricas e comanda o computador e boa parte da produção; e Clara Coutinho, ou Kakau, uma advogada que começou a adentrar no mundo do teatro junto com os piquetes e que já prestou assistência jurídica para inúmeros dramaturgos preocupados com questões de seus textos e que nenhum artista ali sabia responder. Ou seja, para comparecer nas segundas-feiras, não é obrigatório nem ser fã de teatro, nem escrever teatro. Mas se quiser pode.

piquete: leitura de dramaturgias em processo

Plataforma urgia + ruína acesa + projeto arquipélago

Segundas-feiras, chegada às 19h, início às 19h30

Rua Lira, 74 - Vila Madalena. No terraço. Provavelmente tem que tocar a campainha!

Mais informações no Instagram: @u_r_g_i_a

Subscribe to Citrica

Don’t miss out on the latest issues. Sign up now to get access to the library of members-only issues.
jamie@example.com
Subscribe