Old que algo aconteceu
Desenhos para colorir - Bobbie Goods - com imagens da peça. Maquiagens coloridas de festas infantis por debaixo de máscaras com cabeças envelhecidas e desfiguradas e perucas despenteadas. Toalhas estampadas com desenhos animados. Os acordes da abertura de Bob Esponja aparecendo repentinamente no meio de uma música. Tudo! Tênis de rodinhas. Crocs. Brinquedos que tocam música sendo tirados de um cooler. Uma pessoa mascarada sendo levantada por um macaco mecânico. Old que “Nada nos acontece” serve cunt. Mas, sobretudo, o Teatro da Matilha faz uma declaração de amor ao escolher ver beleza no feio e seriedade no tosco em um ato de generosidade radicalmente Camp. De acordo com Susan Sontag, o Camp é a “sensibilidade da seriedade fracassada, da teatralização da experiência. O Camp rejeita tanto as harmonias da seriedade tradicional quanto os riscos da identificação total com estados extremos de sentimento.” O Camp é anti-trágico. E as divas da Matilha divertem através da ironia ao abordar uma filosofia completamente pessimista de um mundo em que a maior esperança a ser cultivada é que nada aconteça. Juro.
Não é à toa que há múltiplas cosmovisões que defendem o cultivo de um imaginário de futuro do planeta como forma de resistência política. De Ailton Krenak ao Solarpunk, qualquer um que converse com alguém que nasceu a partir dos anos 90 - como é o caso dos que dançaram no palco do Sesc Pompeia - se dá conta da exaustão mental da juventude. Pessoas que nos primeiros dias de escola foram ensinadas do esgotamento de recursos naturais da Terra, que atravessaram anos fundamentais de sua juventude em isolamento social e que desenvolvem relações interpessoais esquizofrênicas causadas pelos estímulos do mundo virtual. O maior desejo que essa geração pode cultivar é justamente o de não ter nada depois.
Byung Chul Han argumenta que a expansão das redes sociais no cotidiano tem relação direta com a crise da narração na contemporaneidade. Narrar requer um estado de distensão psíquica, requer tédio, e na era das redes sociais, ele argumenta, não existe mais o tédio nem o estado contemplativo. A realidade digitalizada passa a ser a própria informação, sem a experiência da presença imediata. Ao mesmo tempo, é somente o exercício de narrar o futuro que é capaz de nos dar esperança. A crise da narração chega aos palcos também; há cada vez menos histórias sendo contadas e mais fragmentos que se relacionam apenas por seu tema. “Nada nos acontece”, no entanto, escapa dessa lógica. Um orgasmo não é um fragmento. Uma epifania não é um fragmento.
A Matilha escolhe tratar do devir-nada, conceito de Franco ‘Bifo’ Berardi, começando pelo passado. Uma das intérpretes estoura balões por debaixo da blusa e pare os bebês que choram comicamente pelo palco. É ela a professora da aula de balé da cena seguinte. As crianças fazem uma apresentação ao som de um piano pequeno tocado ao vivo, provavelmente bastante parecida com espetáculos que fizeram há décadas atrás, muito antes de se descobrirem matilha. É a situação mais evidente do espetáculo, talvez por ser a mais comum no imaginário das pessoas que o construíram: o primeiro título da coreografia foi “Criança triste”.
E como consequência de um futuro de nada, está, é claro, a impunidade. Se tudo isso leva a nada, faço o que quiser, em uma contradição. Nem mesmo a história poderá cobrar, já que espera-se que não existam gerações futuras. Por isso, talvez, os intérpretes dançam em direção à ratoeiras, criam o impulso de se beijar e, logo depois, de se agredir. Para depois continuar dançando. Também se batem com as toalhas coloridas após afogarem as cabeças um dos outros em baldes cheios de água. E depois dançam encharcados, com o som ridículo do chão de madeira molhado. Ou apagam cigarros uns nos outros sem fumá-los, para depois continuarem dançando. Em uma operação Camp, o Teatro da Matilha promove o seu senso estético com divertimento, que neutraliza a indignação moral e, mais além, dissolve a moralidade.
Partindo do nada, o Teatro da Matilha definitivamente faz algo acontecer - senão com eles, ao menos com o público. Uma única frase do folheto que é entregue ao final já é alguma coisa: “Pessimismo é reconhecer o tamanho da dança e se propor a dançar mesmo assim”. Talvez seja essa consciência pessimista que a juventude deveria assumir, para aprender a propor a partir dela. Nada vai acontecer ainda nos dias 30 e 31 de agosto, sábado às 19h30 e domingo às 17h30, no Sesc Pompeia. Vai assistir que tá tudo.
Concepção e coreografia: Tadzio Veiga
Intérpretes: Carol Gás (ela/dela), Giorgia Tolaini (ela/dela), Léo Souza (ele/dele), Mariê Olops (ela/dela), Tadzio Veiga (ele/dele) e Teo Cirenza (ele/dele)
Composição musical e performance musical: ViniTheKid (ele/dele ela/dela elu/delu)
Desenho de luz: Giorgia Tolaini e Dener Moreira (ele/dele)
Operação de luz: Dener Moreira
Cenografia e figurino: Tadzio Veiga
Direção de arte: Mari Cherubini (ela/dela ele/dele elu)
Produção: Tadzio Veiga
Assistência de Produção: Fábio Lopes (ele/dele)