"Out of the blue" fui ao teatro em Zagreb

Assistir uma peça em outro país é uma experiência duplamente cultural. É cultural, claro, porque é uma peça de teatro; depois, por observar o comportamento dos espectadores e tudo o que envolve a produção em outro país. É também um pouco perigoso ser turista porque costumamos analisar todos os comportamentos que vimos nos poucos dias que vivemos naquele país e colocá-los como regra. Por exemplo, se algum estrangeiro fosse a São Paulo e assistisse “Bacantes” do Teatro Oficina, ele poderia generalizar erroneamente todo o teatro brasileiro com base naquela experiência. Imagina se algum estrangeiro visitou São Paulo e casualmente entrou em um teatro para assistir “A história do olho”, de Janaína Leite, pensando que era mais uma peça do repertório clássico do país? Essa versão do Brasil deve ser muito mais divertida.

Na última quarta-feira, dia 18 de setembro, fui ao teatro em Zagreb e respondi uma pergunta que nunca me tinha feito: como os croatas assistem teatro? Estou vivendo um mês em uma residência artística em Klanjec, uma pequena cidade entre as montanhas que fica a uma hora de carro da capital - uma experiência que veio de forma completamente inesperada, repentina, “Out of the blue” na minha vida. Eu não sabia nada da Croácia além de que era onde gravavam Game Of Thrones - e descobri ontem que Mamma Mia também foi gravado aqui. E eu nunca assisti um episódio de Game of Thrones. Dunja e Jerko, os donos do centro cultural onde estou morando e trabalhando, a Kuca Klajn, e os coordenadores da residência artística, levaram nós, os três residentes, para assistir a peça. “Family trip”. 

Assim que chegamos, já percebi que eles conheciam todos os trabalhadores envolvidos com a peça, assim como grande parte do público. “É uma cidade pequena”, disse Dunja. E é mesmo. Na Croácia inteira moram três milhões de pessoas, o que é menos que a população da zona leste de São Paulo, de acordo com dados de 2022 do IBGE. Mas não era só pelas estatísticas populacionais que eles conheciam todo mundo, e nem porque são divertidos, amigáveis e populares. Era uma noite importante para a cena artística de Zagreb. A peça era uma produção francesa de “circo contemporâneo”. “Out of the blue” é uma peça que ficou duas noites em cartaz aqui e que é formada basicamente por dois atores dentro de uma piscina. Era algo novo e todos os trabalhadores da cultura queriam prestigiar. Mas fui descobrir apenas na volta para casa que a noite também tinha sua importância por motivos que não estavam no palco.

Na plateia, crianças exageradamente loiras passavam correndo na frente do palco. Um homem, e não uma mulher, saiu correndo em direção ao banheiro no meio do espetáculo com um bebê nos braços que tinha a fralda cheia. De novo: não podemos generalizar o comportamento de todos os homens croatas com base em um só. Uma senhora de cabelo vermelho anotava coisas em um caderno. Ao final, curiosa, perguntei se ela escreveria sobre a peça, porque gostaria de ler. Ela me disse que escreveria, mas só para ela. Ninguém leria. Eu passo facilmente como croata por ser muito branca e ter cabelo vermelho, moda que talvez tenha sido iniciada por Dua Lipa, que é da Albânia, país da região. Algumas pessoas me abordaram falando em croata, o que me causa um rápido desespero. “Sorry, I don’t speak Croatian”. Apesar de estar há vinte dias ouvindo o idioma, que tem o mesmo ritmo cantado do italiano, só aprendi a falar svila, que significa cetim e é também o nome da cachorra da casa, e pivo, que é cerveja. Apenas o essencial. 

Mas sobre o que é a peça? Sobre nada. Para mim, pode ser uma tela em branco. O material é tão primário - a água - que é inevitável ter uma relação profunda com ele e identificar-se de alguma forma. Aqui em casa - na minha casa croata - discutimos bastante sobre o espetáculo. Conversamos sobre experiências pessoais de quase morte com água, sobre medo da água, sobre ter hobbies com água, como é o caso do mergulho, sobre ver a água somente como algo utilitário e ser incapaz de conseguir se divertir, sobre viver perto ou longe do mar. Na verdade, somos 60% água. “Um pepino com ansiedade”, como disse Dunja. Antes de nascer, estamos imersos dentro da água e quando nascemos aprendemos a não estar mais. A viver no seco. 

A estrutura dramatúrgica, à primeira vista, pode parecer com a tradicional do circo: uma colagem de cenas de demonstrações de habilidades. No entanto, se você é como eu e infelizmente faz parte da tradição europeia iluminista que quer buscar sentido em absolutamente tudo, você também pode se contentar. Na primeira cena, um dos dois atores fica quatro minutos e quarenta segundos contados no relógio debaixo d’água. Em seguida, ele relata - em inglês, thank you very much - uma história de quando tinha quatro anos e ficou preso dentro de uma represa debaixo de uma pedra. Foi uma experiência de quase morte. Ele mesmo não se lembra dessa história, mas seus pais dizem que ele nunca mais foi o mesmo. 

Podemos facilmente associar esse relato, praticamente o único texto de todo o espetáculo, com o título. “Out of the blue”, além de fazer a clara referência à cor da piscina, também é uma expressão que significa algo que aconteceu inesperadamente. Talvez toda a peça e as brincadeiras debaixo d’água sejam uma tentativa de resgatar essa memória ou de superar de alguma forma esse trauma que - como ele mesmo diz - ainda está preso no seu corpo. Além desse relato que amarra a dramaturgia, cada cena cria múltiplas imagens que podem ter uma interpretação por si só: vemos dois homens de calça e camiseta tentando caminhar debaixo d’água, depois os dois deitados respirando e formando bolhas, também um deles nadando com uma cauda dourada de sereia; o outro, em seguida, tentando escapar com uma corda envolto em um jogo de luz que o leva para o oceano profundo e, por fim, os dois nadando em meio a uma imensidão de plástico. O fim da peça foi como um corte lacaniano: no momento em que eu estava mais imersa, acabou. Aqui na região, o que eu associei ao psicanalista francês costuma ser chamado de “corte sérvio”, uma mudança abrupta de cenas que fazia parte da tendência da chamada Onda Negra, um movimento cinematográfico iugoslavo das décadas de sessenta e setenta. Entendi que seria a versão deles do Cinema Novo.

O espetáculo, no entanto, pode muito bem ser apreciado sem nenhuma necessidade de busca de sentido ou de lógica cartesiana. Afinal, como disse acima, cada um tem suas próprias histórias e sua própria relação íntima com a água. A dramaturgia também cria lacunas para os espectadores. A ideia, no fim, é muito simples. Todo mundo já mergulhou alguma vez na vida e percebeu como o corpo é obrigado a entrar em outro estado, a descobrir outras movimentações. A pele altera sua textura, o cabelo se move de forma diferente, os pulmões param de trabalhar. Mas poucas pessoas pensaram em levar isso para o palco. Pessoalmente, não tenho outra referência de peça que se passa dentro de uma piscina, por isso consigo relacionar apenas com teatralidades liminares, como é o caso do nado sincronizado. O espetáculo, inclusive, pode ser visto também apenas como algo belo no sentido mais tradicional da palavra. O circo familiar, aquele que viaja pelos interiores do país em grandes caminhões, busca agradar ao público. Servir bem para poder servir sempre. O que me leva a pensar na expressão “circo contemporâneo” que classifica “Out of the blue” e que também me traz certo incômodo. 

O “circo contemporâneo” é associado às produções que saem majoritariamente das escolas de circo e que são muitas vezes realizadas em teatros ou em outros espaços e não mais em lonas coloridas. No entanto, existem muitas famílias de tradição circense que vivem e sobrevivem do circo nos interiores do país, e que também estão se reinventando à sua própria maneira, e produzindo mudanças na linguagem circense na contemporaneidade. Para o público desse tipo de circo, talvez seja mais cativante assistir uma cena entre Elsa e Anna, as princesas do filme “Frozen”, do que ver dois atores nadando e brincando em uma piscina durante uma hora. E aí temos material para mil outras discussões que envolvem, como sempre, os embates entre o capital e a arte e todas as fronteiras entre o que é cultura e o que é entretenimento.

“Out of the blue” pode se enquadrar como um espetáculo circense porque, na essência, tudo é sobre demonstração de habilidades e o domínio dos atuantes sobre o material trabalhado. É visível que existiu um estudo muito grande sobre a física da coisa. O trabalho com a luz e o som é extremamente sofisticado e altera radicalmente, mas sem ser abrupto, a atmosfera da cena. Todas as mudanças acontecem de forma bastante natural. É também muito inspirador assistir a espetáculos que se propõe a experimentar novas linguagens, e é claro que uma montagem que requer uma estrutura tão cara é possível apenas em países como a França. Na Croácia, a situação do circo é bastante complicada. Assim como no Brasil, o circo é muitas vezes tratado pela elite artística como uma arte menor, menos intelectualizada, menos merecedora de dinheiro. Aqui na Croácia, no entanto, essa situação está institucionalizada e fervendo nas discussões da cultura do país.

Como me explicou Antonia Kuzmanić, a vice-diretora da Associação Croata de Circo Contemporâneo, não existe uma categoria para os artistas circenses na Associação de Artistas Independentes da Croácia, que serve para unificar a classe artística e também para reduzir os impostos a serem pagos. E é claro que não ser considerado oficialmente artista também impede de se inscrever em editais e programas de fomento ligados à arte. Os artistas que fazem parte dessa associação têm uma legitimação maior por parte das instituições da cultura e do entretenimento e garantem mais alguns direitos. É parecido com o nosso DRT. No dia anterior ao espetáculo que assisti, a Associação de artistas independentes votou contra a criação de uma nova categoria que contemplaria os artistas do circo. Durante o espetáculo, o Ministro da Cultura estava sentado na segunda fila. O produtor fez um discurso ao final que emocionou a muitos dos presentes, e provocou outros. Ele falou em prol do reconhecimento do circo como arte - se os próprios artistas estão uns contra os outros, quem vai ser a favor? A discussão se estendeu na porta da sala de espetáculos, em pequenas rodas de amigos que conversavam com expressões bravas, preocupadas, surpresas ou confusas. Nenhuma piscina francesa foi capaz de apagar o fogo dos artistas de circo.

Ficha técnica:

“Out of the blue”

Criação e interpretação: Frédéric Vernier, Sébastien Davis-VanGelder

Dramaturgia: Delphine Lanson

Olhar exterior: Mathieu Despoisse

Olhar aquático: Rémy Dubern

Direção geral: Nicolas Julliand

Iluminação: Vincent Griffaut

Sonoplastia: Hans Kunze

Construção da piscina: Franz Clochard 

Figurino e adereços: Emmanuelle Grobert

Montagem e pós-produção: Olivier Daco - AY-ROOP

Difusão: Pauline Sarrazin - AY-ROOP

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