Panelas cheias, estômago vazio

Uma mulher veste um traje que a coloca em uma posição entre um samurai e uma chefe de cozinha. Com uma espada, essa mulher indica em seu próprio corpo os cortes executados por esses guerreiros japoneses quando queriam sacrificar-se. Ao longo do espetáculo, essa mulher corta um corpo de um peixe para preparar o seu próprio sacrifício: comer. Maíra Maciel e Tati Caltabiano trazem na abertura de processo de “Chef psi_como comer como como” reflexões de uma mulher que encontrou na gastronomia da mais alta qualidade uma forma de curar problemas psíquicos alheios, tentando, sem sucesso, deixar o seu conflito de lado: a anorexia.

Maíra constrói um jogo com a dramaturgia, lançando pistas para que o público descubra ao final sobre o que se trata a peça. Ela prepara um prato requintado: o líder do cardume de uma espécie norueguesa de peixes, com um molho espesso, queijo parma, pistaches italianos e azeite das serras de Minas Gerais. O público é estimulado sensorialmente ao sentir os aromas dos alimentos ou ao ver, por exemplo, o vapor saindo da panela. No entanto, seria bastante valoroso ter uma proximidade maior com as ações pequenas próprias da cozinha. Fica um gostinho de “quero mais” - que também se relaciona com as temáticas da apresentação. De longe, os acontecimentos parecem monótonos, quando na verdade há um espetáculo completo acontecendo entre suas mãos.

Enquanto cozinha, conta histórias de pacientes que foram tratados com psicanálise e alimentos com propriedades específicas para doenças mentais. Todos os ingredientes do prato que prepara na cena tem uma função também psíquica, e o público é instigado a descobrir o que ela precisa tratar. Dessa vez, é Maíra quem vai comer. A apresentação inicia-se com uma projeção com uma espécie de prólogo, em que a idealizadora do projeto fala sobre o que a sua fome não é. Ela não é uma obrigação como a fome daqueles que não tem o que comer; ela não é uma escolha política ou religiosa como a fome daqueles que escolhem fazer jejum. Sua fome é um segredo. A partir daí, ela constrói uma narrativa que entrelaça suas vivências no trabalho como “cozinheira das emoções” com a sua história pessoal. Na cena, ela prepara a sua própria cura.

O vazio e a ausência são elementos bastante marcados na dramaturgia. Maíra mostra sua coleção de facas com utilidades muito específicas e reflete, em uma pista, que ao afiar uma faca, ela se afina, até eventualmente desaparecer. Ela ainda chega a afirmar, em um tom de voz carregado de culpa de quem sabe que seu raciocínio é ilógico, que um corpo e uma mente saudáveis precisam de uma vida simples, sem excessos e sem gorduras. Ainda, cita que a ilha de Okinawa, no Japão, é o lugar do mundo onde as pessoas vivem mais e que isso se dá porque as pessoas comem sem se saciar completamente. O vazio no estômago, nesse pensamento, seria importante para a longevidade.

Ao longo da peça, Maíra faz duas perguntas bastante curiosas para a plateia em torno da alimentação. Primeiro, ela explica o que é um diário alimentar, mostra o exemplo de um trecho de seu diário - em que relata um café da manhã ausente - e pergunta ao público se alguém pode contar o que almoçou no dia anterior. A maioria das pessoas presentes não foi capaz de resgatar essa memória. Um pouco depois, ela questiona se alguém já se perguntou o que pediria como última refeição de sua vida, como fazem os condenados à morte. Uma senhora respondeu que pediria pipoca, e Maíra, com brilho nos olhos, começou a descrever como prepararia um prato especial. Era impossível disfarçar a paixão pelo seu ofício em suas feições quando teve a oportunidade de improvisar a ideia de um prato.

As reflexões ao redor da discussão se expandem quando se pensa no contexto em que essa abertura de processo está inserida. “Chef psi_como comer como como” tomou os palcos do Teatro de Contêiner na terça-feira 13, dois dias depois do espetáculo de Letícia Rodrigues, “116 gramas: uma peça para emagrecer”. As duas mulheres trazem debates que partem de experiências pessoais ao redor da alimentação e da obsessão pela magreza, na perspectiva de dois extremos: a anorexia e a obesidade mórbida. Não é por acaso que essas duas peças estão dentro da Mostra Solos Femininos, visto que as mulheres jovens são a parcela da população mais acometida com distúrbios alimentares. Depois das duas peças, o público sai da caixa preta do teatro e se depara com outro problema alimentar: o fluxo. Os três casos se complementam e deixam evidentes que, apesar do prato de comida ser servido em porções individuais, os conflitos em torno dele são sempre coletivos.

Ficha técnica:
"Chef psi_como comer como como"
Idealização, Dramaturgia e Atuação: Maíra Maciel
Direção Artística: Tati Caltabiano
Diretora Assistente e Preparação Corporal: Renata Asato
Preparação Vocal: Natália Nery
Figurino: Éder Lopes
Cenário: Zé Valdir Albuquerque
Animação: André Passos
Vídeo Mapping: Soraia Costa
Provocadores: Janaina Leite, Caio Balthazar, Aline Filócomo, Anna Zêpa, Tatiana Ribeiro, Camilla Flores, Henrique Yukio Vidal, Gilka Verana
Realização: Coletivo Petit Comité

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