Tremer o chão de um país que não conhece o terremoto
Este texto faz parte da iniciativa "Capivara Cítrica", uma colaboração da Cítrica Crítica com A Capivara Crítica e também está disponível no Instagram @capivaracritica. Quem escreve aqui é Lena Giuliano, da Cítrica.
No dia 24 de janeiro de 2025, São Paulo sofreu um cataclismo. Depois de dias de um calor que faz as peles grudarem e as roupas federem ao andar na rua por cinco minutos, o dilúvio chegou na tarde da sexta-feira. A água invadiu tudo. Desceu as escadas rolantes do metrô e deixou as pessoas ilhadas nos corrimões, fez carros boiarem e tetos desabarem. E é claro que mesmo depois do fim da água, a chuva ainda continuava nas casas sem luz e nas avenidas lotadas de trânsito. Segundo a Defesa Civil, que enviou alertas para os celulares de todos os paulistanos, foi a terceira maior chuva na cidade desde 1961. Foi nesse dia também que estreou a peça “Painecur” da companhia chilena La Familia Teatro no Tusp Butantã, que apresentou por duas noites uma narrativa que se inicia com um cataclismo.
Na peça, um grupo de estudantes de direito tem que fazer um trabalho para não reprovar o semestre. O professor lhes dá o caso mais difícil para resolver: um julgamento histórico de 1960 com a sentença perdida. Após o grande terremoto de Valdívia, o maior sismo registrado na história, uma comunidade mapuche sacrificou José Luís Painecur, uma criança de sete anos de idade, com o objetivo de parar o cataclismo. A cena se passa toda dentro da sala de aula na madrugada anterior da entrega do trabalho. De quatro, três dos estudantes são os piores alunos da sala: um deles é um bêbado que carrega latas de cerveja na mochila, outro é um engomadinho que é neto de um ministro do Pinochet e o terceiro é um pai solo, que se desdobra entre a faculdade, o trabalho e a paternidade. Ele, Ernesto, não tem o luxo, como os outros, de reprovar o semestre - até porque no Chile não há faculdades gratuitas. Os três se unem à Melissa, a melhor aluna da sala que ao final revela ser mapuche. É ela que trás a perspectiva indígena para o debate dos três estudantes brancos e perdidos com o caso, que parecem não entender a profundidade do julgamento.
O sacrifício é um costume comum em diversas culturas originárias da América do Sul. Os incas, por exemplo, sacrificavam e mumificavam mulheres e crianças para parar períodos de secas e catástrofes naturais. O povo mapuche conviveu com os incas e foi o único da região que não foi conquistado pelo império. No século XIX, no entanto, os mapuches perderam 95% do seu território do lado chileno pela colonização. A questão do sacrifício é uma das grandes pautas políticas em alguns países da América do Sul. Na Bolívia, o governo de Evo Morales criou, em 2009, uma nova constituição que estabeleceu o país como um Estado plurinacional com dois sistemas judiciários: a justiça ordinária e a justiça tradicional indígena. Assim, existem territórios que têm tribunais com funcionamento próprio, valorizando a ideologia das culturas que os ocupam. Curiosamente, o referendo que inaugurou a nova constituição fez aniversário no mesmo dia da montagem de “Painecur” em São Paulo.
Em 2019, o Chile viveu uma explosão social com uma série de protestos que pediam por uma nova constituição. Dentre as propostas, estava a ideia de estabelecer um sistema judiciário que dê mais justiça aos povos indígenas. Apesar da discussão ter tomado grandes proporções em 2019, o grupo La Família estreou a peça no ano anterior, antecipando os debates. O diretor e dramaturgo Eduardo Luna contou que apresentaram o espetáculo em diversos teatros, muitas vezes com um público majoritariamente mapuche, como em um festival de teatro de Bariloche, onde apresentaram “Painecur” dias depois de um caso de homicídio indígena na região. A peça também foi reconhecida com diversos prêmios, como o de Melhor Dramaturgia pelo Ministério das Culturas, das Artes e do Patrimônio e viajou ao Brasil com apoio do Consulado General de Chile em São Paulo. Apesar de tudo isso, Eduardo, ao final dos aplausos, disse que “hoy fazemos teatro como se fosse a primeira vez”.
Esse povo indígena se localiza em sua maioria no que hoje é o sudoeste da Argentina e o centro-sul do Chile. Mas Melissa diz em um momento de “Painecur” que ela não é chilena, é mapuche, e ainda diz que “o chileno cria sua identidade com o que não é”. Talvez seja uma reflexão que se aplica a todos os países que passaram por processos de colonização. Nações que, como o Brasil, tem uma maioria da população que faz parte da classe trabalhadora urbana e que não se identifica completamente nem com a colônia e nem com os povos originários. Nesse sentido, há dois momentos do espetáculo que chamam atenção: o momento em que um dos estudantes mostra o perfil do Facebook de uma pessoa mapuche de direita, usando como um exemplo de alguém respeitável, e quando Ernesto canta uma música indígena em um palco vazio, onde o único que chama a atenção é o celular que segura na mão direita. La Família, então, veio ao Brasil e fez tremer o chão de um país que não sofre terremotos. Reforçou as certezas do que não somos e aumentou a dúvida do que é a identidade brasileira porque os cataclismos e os sacrifícios são diferentes, mas todos eles falam portunhol.
Este texto faz parte da parceria "Capivara Cítrica", uma união da Cítrica Crítica com A capivara crítica (@capivaracritica), que surgiu em meados de 2022 a partir de algumas perguntas: Qual o lugar dos estudantes universitários junto à produção de crítica teatral hoje? Há espaço para falar sobre crítica teatral em plataformas como o Instagram? Mais do que uma tentativa, a página é uma procura por novos espaços críticos a serem ocupados por dois estudantes universitários de Artes Cênicas na USP, Bárbara Freitas e Daniel Vianna. Bá e Danni escrevem sempre duas críticas sobre um mesmo espetáculo. Neste texto, a perspectiva é de Lena Giuliano, da Cìtrica Crítica.
Ficha técnica:
"Painecur" - La Família Teatro
Dramaturgia e direção: Eduardo Luna
Assistente de direção: Nicole Morales
Assessoria Dramatúrgica e Design Gráfico: Javier Alvarado
Elenco: Pamela Alarcón, Sebastián Silva Rodríguez, Alexis Moreno Venegas e Felipe Lagos
Desenho Teatral: Karla Rodríguez e Javiera Severino
Composição Musical: Daniel Cartes
Design de Som: Franco Peñaloza
Design e Produção Audiovisual: Pelochuzo Producciones
Preparação Atoral: Daniela Venegas
Realização Cenográfica: Gian Reginato
Equipe de Produção: Nicole Morales, Karla Rodríguez e Javiera Severino
Produção São Paulo: Palipalan Arte e Cultura