Uma fábula do fim do mundo

“A última raposa do mundo” está cada vez mais perto de tornar-se uma peça de não-ficção para os moradores da cidade de São Paulo. Talvez o elemento mais ficcional da narrativa seja a presença de smartphones com baterias de longa duração, incomum em um mundo em que a obsolescência é cada vez mais programada. Apesar da introdução pessimista, o espetáculo do grupo Fumaça é bem humorado e tem potencial para encantar a todas as idades. 

Uma raposa brasileira diz ser a última raposa do mundo. Ela está isolada no topo de um prédio, na esperança de que algum dos smartphones que encontrou perdidos pela rua a ajude a se comunicar com alguém - se é que existe mais alguém. A altitude a ajuda a escapar da fumaça, que é um dos elementos misteriosos do enredo. Não se sabe exatamente o que é; basta saber que a raposa deve fugir dela para sobreviver. É claro que o cenário de isolamento remete à pandemia de Covid-19. No entanto, é preciso ter um olhar maior para a possibilidade próxima comum a todos os espectadores da temporada de estreia do espetáculo, no CCSP: a de se tornarem refugiados climáticos.

Já que deve fugir da fumaça, a raposa virou amiga do vento, uma personagem que acompanha a protagonista em roupas brancas, dançando e tocando brasilidades em um clarinete. A carga poética do espetáculo e sua dimensão fabular é expandida com a presença dessa personificação. O público se entedia nesse não-lugar ouvindo a raposa monologar através de um megafone junto à ventania musical, até que acontece algo que muda tudo: um celular toca. Uma outra raposa? O mundo não está vazio? É possível fazer uma ligação? O ser que está do outro lado só se comunica fazendo perguntas. Ele está em uma biblioteca; já leu vários livros, enquanto a raposa só teve acesso à primeiras páginas de e-books. Eles escutam uma música de Gal Costa e conversam sobre a solidão. O silêncio fala, diz a raposa, e eu sou fluente. 

O smartphone da raposa fica sem bateria e o ser desconhecido decide ir até ela. Na espera, ela idealiza diferentes cenários da chegada, torcendo para que seja outra raposa. A cada cena imaginada, no entanto, a suposta raposa perde um elemento de sua espécie, tornando-se um bicho neutro, um animal sem espécie. Ela deve aceitar a realidade como ela é - talvez ele não seja uma raposa. Quem chega, finalmente, é um grilo, que já está no final da sua curta vida com duração de seis meses. Os dois conversam, olham a vista, correm, brincam. A caracterização das personagens reforça a localização e a temporalidade da dramaturgia. As orelhas da raposa são coques no cabelo. Ela usa coturnos, calça cargo, camisa e bandana. O grilo veste um corta-vento verde e uma bermuda da mesma cor por cima de um legging, junto com tênis desportivos. Suas antenas de inseto estão acopladas a um óculos de sol. São bichos urbanos e do futuro distópico. 

A raposa pega no sono e o grilo vai embora, sabendo que sua morte está próxima. Ele, contudo, deixou um rastro de páginas de livros para que ela consiga encontrar seu abrigo: “Você é a última do mundo, mas tem uma biblioteca de outros mundos te esperando”. A raposa amarra um tecido no clarinete e transforma o vento em um porta-bandeira, coloca as antenas do grilo e sai à procura desse lugar tão sonhado. Talvez as páginas tenham se dispersado com a fumaça, talvez o vento não consiga reorganizá-las, talvez ela não passe pela porta por onde o grilo entrou. No entanto, naquele momento, a raposa não era mais a última. 

Ficha Técnica:

“A última raposa do mundo”

Elenco: Jhennifer Peguim, Nuno José e Patrick Moreira Lima

Direção e dramaturgia: Moisés Baião

Pesquisa musical: Patrick Moreira Lima e Moisés Baião

Treinamento de humor: Thais Melo

Cenografia: Julio Vida

Luz: Dida Genofre

Figurino: Acacio Mendes

Design de objetos: Leon Henrico Geraldi

Concepção de maquiagem: Thais Valentin

Arranjo musical de ʽPeixe Vivoʼ: Bruno Avoglia

Operação de luz: Dida Genofre

Operação de som: Moisés Baião

Design gráfico, ilustração e mídias sociais: Larissa da Cruz e Moisés Baião

Fotos digitais: Edu Figueiredo

Fotos analógicas: Larissa da Cruz

Assessoria de imprensa: Canal Aberto

Produção: Lud Picosque — Corpo Rastreado

 

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