Crítica da espectadora fracassada
Se você chegou até este texto, é provável que esteja inserido em círculos sociais classificados como progressistas e já tenha vivido alguma situação desconfortável com um homem hétero da mesma classificação. Talvez você já tenha sido assediada por algum diretor de teatro que precisava muito ver seu corpo para entender se você seria ideal para o papel, ou tenha recebido likes em fotos de cinco anos atrás por parte de atores casados por ter cumprimentado eles com “simpatia demais” depois de assistir uma peça que gostou, ou ainda ter recebido emails suspeitos de madrugada de professores universitários que no mesmo dia compartilharam posts feministas. Não, esta não é uma crônica da Carrie Bradshaw. Este é um texto sobre “Eu amo Chris: uma coleção de fracassos”, que talvez não existisse se o termo “esquerdomacho” fosse popular na Nova York de 1997 e a autora do livro que inspirou o espetáculo, Chris Kraus, estivesse avisada sobre os perigos de se envolver com esse tipo de homem.
A montagem do Coletivo Dodecafônico utiliza o livro “Eu amo Dick”, de Chris Kraus, como dispositivo para realizar procedimentos, como conta Verônica Veloso, a diretora do espetáculo, que performa em uma das cenas. O livro narra a relação entre Chris, uma cineasta experimental sem muito sucesso, e Sylvère, seu marido, um professor universitário que levou o pensamento pós-estruturalista francês para os Estados Unidos. Os dois conhecem um crítico cultural, Dick, em um jantar, e se envolvem em uma obsessão amorosa. Em um tom entre admiração intelectual e desejo erótico, os dois começam a escrever-lhe cartas frequentemente, que seriam acessadas ao destinatário apenas em uma performance teatral em que colariam todos os papéis em sua casa, em seu carro e em seu jardim de cactos. A relação sai dos envelopes e torna-se real, dentro do que pode-se chamar de realidade. O Dick que queriam ainda era uma ficção inventada na cabeça do casal. Dick escreve apenas uma carta. Endereça-a à Sylvère e escreve o nome de Chris errado.
As mulheres do Dodecafônico identificam-se com Chris Kraus. Além de serem em sua maioria mulheres brancas de quarenta anos, o mesmo perfil da escritora de cartas e de livros, elas também já tiveram suas criações como artistas resumidas a “femininas”. “Vocês já assistiram a alguma peça de teatro masculina?”, perguntam. Eu, particularmente, já assisti várias. Ninguém avisa isso no programa dos espetáculos. O livro ganhou um posfácio que analisa a obra de forma justa e a classifica como “ficção teórica”. Alguns textos citados no livro, por exemplo, chamam-se “Fenomenologia da garota solitária” ou “O conto da vadia burra”. O coletivo gosta do nome do livro, que traz o “Dick” em três significados: como nome, como “babaca” ou como “pinto”. “Ela coloca o pinto na boca de todo mundo”. Elas, no entanto, preferem homenagear Chris em seu título. A conclusão do Dodecafônico é que a mulher é usada como moeda de troca até nos círculos mais progressistas. E não só isso: quando se nasce mulher, fracassar é uma condição.
O fracasso aparece em todas as áreas da vida de uma mulher. Verônica entra em cena primeiro para fazer um “mansplaining” e contextualizar a peça, e depois para relatar todos os fracassos profissionais do grupo. Todos os projetos que escreveram e não foram contemplados ao longo de dez anos. Ela assume uma postura da professora universitária que é e dá uma aula expositiva no palco. Quando ela cita seu doutorado como parte da coleção de fracassos, ouvi um homem do público dizer: “Excelente!”. Talvez a carreira acadêmica seja o recorte das frustrações com que os homens cis que frequentam o Tusp Maria Antônia mais se identificam. O fracasso amoroso, por outro lado, aparece em todas as outras atrizes. Todas elas são Chris Kraus, todas elas brincam com cartas endereçadas ao Dick e todas elas encenam momentos primeiro entre Chris e Sylvère, depois entre Chris e Dick.
As cenas são rememoradas coletivamente e filmadas por uma câmera de dentro do palco operada por uma das atrizes, Beatriz Belintani. Tudo o que acontece também é visto por outro ângulo em uma projeção feita sobre uma parede de caixas de papelão: “O passado termina numa caixa”. Estão em um apartamento, cenário de todas as histórias do triângulo amoroso e que em cenas anteriores funcionou como um museu. O público entra no teatro e dirige-se ao palco, incentivado a conversar com as personagens - cada Chris conta uma história - e a tocar em todos os objetos. Uma máquina de datilografar, maços de cigarro, fotografias com uma silhueta misteriosa, um sofá verde, plantas, tapetes, livros, remédios. Tudo tem etiquetas e descrições breves de como o objeto chegou ali. É só depois de conhecer, tocar e interagir com as Chrises que o público senta-se em silêncio para ouvi-las.
Vemos em centenas de cartas endereçadas à Dick que aparecem ao longo do espetáculo que o fracasso é romântico, mas ele é, sobretudo, sexual. As Chrises relatam as dificuldades para conseguir um sexo casual: primeiro, encontrar um cara legal seguindo toda a burocracia digital contemporânea; depois, os cuidados para não se colocar em perigo; e, por fim, o equilíbrio na manhã seguinte para falar “obrigada, até nunca mais” sem ser julgada como uma escrota. Nas cenas de sexo, as mulheres interagem com a câmera, com vários objetos e com o vídeo ao vivo do único ator homem, que é filmado no camarim. As cenas de sexo, em “Eu amo Chris”, são protagonizadas e dirigidas à mulheres. No entanto, depois dos orgasmos, a peça diz que mesmo em meio a uma coleção de fracassos, ainda há esperança. “O fracasso é uma esquina”. E o público se divide em quatro. Cada pessoa deve seguir uma das atrizes em um trajeto diferente, ouvindo textos e músicas em fones de ouvido.
O que é dito dentro do apartamento sai para a rua. “A cidade que atravesso é a mesma que me atravessa”. Ouvimos de forma íntima textos repetidos e expandidos das Chrises em audiotours, que são colagens que combinam uma narrativa sonora pré-parada com as aleatoriedades da cidade. Vi, por exemplo, Michelle, travesti com quem conversei antes de entrar para o espetáculo e que dorme na frente do teatro junto a seu cachorro, Zeus. Quais fracassos ela poderia agregar na coleção do Dodecafônico? O público também performa junto com as atrizes nesse formato; cria-se uma parede invisível entre quem ouve o áudio e quem passa na rua com olhos curiosos. De repente, somos todos Chris. Todas fracassadas. As atrizes e o público voltam a encontrar-se em frente a um um carro completamente coberto com cartas endereçadas à Dick e, em um final cinematográfico, as Chrises vão embora dirigindo. Viram a esquina. É um spoiler? Pode contar? Fracassei. Entra para a minha coleção particular.
Ficha técnica:
“Eu amo Chris”
Encenação: Verônica Veloso
Elenco: Beatriz Belintani, Biagio Pecorelli, Clarissa Kiste, Katia Lazarini e Olívia Niculitcheff
Performer vídeo: Ierê Papá
Dramaturgia: Carla Kinzo
Dramaturgismo: Gabriela Cordaro
Cenário: Heloísa Sousa e Luiza Saad
Adaptação do cenário: Jenn Cardoso
Contrarregragem: Jenn Cardoso
Figurino: Heloísa Sousa e Jorge Wakabara
Iluminação: Aline Santini e Gabriela Ciancio
Operação de Luz: Marina Gatti
Videomapping: Soraia Costa
Operação de som e videomapping: Larissa Siqueira
Design Gráfico: Ierê Papá
Edição de Audiotours: Ierê Papá
Produção Geral: Coletivo Teatro Dodecafônico e Júnior Cecon – Plural Produções Artísticas e Culturais
Assistente de produção: Flávia Santos
Colaboraram no processo: Heloísa Sousa, Hideo Kushiyama e Paulina Caon
Até dia 27/10 no Tusp Maria Antônia. De quinta a sábado às 21h, domingos às 19h.
A produção pede que o público leve o celular carregado e fones de ouvido.