A performance do feminino e o feminino da performance

A grande virtude que a Cia. Banzé mostra no Encontro de Teatro Universitário de 2025 é a ousadia, levando ao palco do Tusp Butantã uma pesquisa de linguagem bastante admirável. O grupo, formado na disciplina Encenação II, que faz parte da grade curricular obrigatória da graduação em Artes Cênicas na USP, se uniu através da montagem de um “Grito parado no ar”, e levou ao festival a sua segunda montagem, “Memórias impressas”, realizada no Ateliê II. Com desejo de continuidade, o grupo se apresentou no Festival Pé Dentro Pé Fora, que aconteceu em junho de 2025 na Casa Livre. A peça se propõe a ser uma adaptação livre a partir da dramaturgia de Claudia Schapira, trabalhada com o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos em 2015, inspirando-se nas temáticas das feminilidades e nos procedimentos performativos, mas não se limitando nelas. 

“Memórias impressas” tem uma estrutura bastante singular: a peça muda a cada apresentação. A direção prepara em segredo uma dramaturgia que vai acontecer só nesse dia. As atrizes não sabem o que vai acontecer, que é justamente a experiência mais cativante da peça: compartilhar, entre palco e plateia, a descoberta dos acontecimentos. Através da expectação, deseja-se com cumplicidade que as atrizes se encontrem nos textos, nas ações, na espacialidade, nos figurinos, na cenografia. Elas são as últimas a ver o espaço cênico, já que iniciam a peça vendadas. Estamos todos juntos caminhando ao mesmo tempo em que se conhecem os caminhos. 

Para que isso seja possível, há uma série de dispositivos. Um exemplo são os textos-fone, textos gravados previamente em áudios pelas diretoras que chegam às atrizes através de fones de ouvido que utilizam em cena. Elas repetem o que escutam na hora, descobrindo os assuntos e as entonações ao mesmo tempo que falam ao público. Assisti a peça ao lado de Lucienne Guedes, atriz da peça original, que estava notadamente nostálgica e emocionada. Ela foi uma das pessoas do público que quis testar os fones logo ao início do espetáculo e me sussurrou que “elas acertaram o tempo certinho dos áudios”. Outro recurso utilizado são as projeções, por onde aparecem textos a serem lidos pelas atrizes ou por algum voluntário do público, e também aparecem comandos para as atrizes: “Luisa, pegue o fone com a direção”; “Laura, vista o figurino X”; “Isabel, pegue o diário no canto Y”. 

A escolha por esse formato leva à radicalidade o aspecto efêmero das artes cênicas. Cada dia é muito diferente do outro. Essa brevidade poderia ser ainda mais trabalhada ao escolher abordar, por exemplo, acontecimentos que se relacionem com as urgências midiáticas daquele dia em específico. Na sociedade da informação tudo é breve e nos provoca estados permanentes de alerta; em “Memórias Impressas” há a oportunidade de transformar, no palco, notícias em narrativas.

Ao mesmo tempo, existem algumas ações já pré-estabelecidas. Toda vez que a direção toca um dos sinos, as atrizes sabem que devem olhar para a projeção; toda vez que a direção toca o outro sino, elas fazem uma coreografia ensaiada, ao som de “Mulher do fim do mundo” da Elza Soares, que funciona como transição. Há três cenas estabelecidas previamente, três monólogos - um de uma personagem que é debutante, um de uma noiva e outro da Virgem Maria, três figuras bastante simbólicas para a construção do feminino - que tem seu texto, suas atrizes e seu figurino alterado toda vez. As personagens permanecem, mas tudo ao seu redor é alterado. Além das três atrizes a serem surpreendidas, existe a atriz-narradora, Mônica, que tem textos decorados e que não se alteram, e que também auxilia, de dentro da cena, a feitura dos improvisos. 

A Cia. Banzé mantém a temática das feminilidades “entre violências, sonhos, recusas e desejos”, mas atualiza, de acordo com o elenco, a visão sobre o feminismo e a construção social do gênero feminino. O grupo traz uma perspectiva que reflete a presença de atrizes negras, de pessoas não-binárias - socializadas na infância como mulheres -, de um elenco mais jovem do que na montagem original e também os dez anos que se passaram entre uma estreia e outra. 

Concomitantemente com a experiência estética produzida pela pesquisa em torno da performatividade, existe, na estrutura dramatúrgica, um abuso de relatos pessoais. Em todas as cenas há monólogos em primeira pessoa, a maioria em tom confessional e com uma ausência de situação, o que depois de algum tempo de peça começa a ser exaustivo. A personagem sempre está sozinha; mesmo em momentos em que todas as atrizes falam, elas buscam uma coralidade e não dialogam. Reconheço isso como um sintoma do teatro que circula pelos palcos dos centros culturais de São Paulo em 2025 - é difícil de encontrar cenas dialógicas dentro do circuito do teatro de grupo ou teatro de pesquisa de linguagem. Mesmo quando há diálogos, parece que o "verdadeiro" discurso do espetáculo chega através dos monólogos. No entanto, seria interessante ver as personagens conversando, e sobretudo acompanhar a interação entre as atrizes no jogo proposto pela peça. Ainda, talvez, construir uma narrativa só que perdure por todo o espetáculo, ao invés de criar situações - quando há - que vivem por apenas uma cena.

A peça termina com uma espécie de piquenique com bolo e sucos. O elenco convida o público a se sentar no espaço cênico enquanto todos comem e bebem. As atrizes iniciam a conversa relatando como se sentiram naquela sessão, o que mais e menos gostaram, momentos engraçados ou em que se sentiram confusas com a dinâmica. O público também é convidado a falar, e quem começou foi justamente um homem que participou de uma das interações fixas: durante uma cena de festa, depois do monólogo da noiva, em que todo o público participa de um baile funk no palco, foi lhe colocada uma máscara com um rosto de homem branco. A música parou e começou um áudio de uma voz de homem relatando desejos sexuais frente à uma mulher de forma grotesca. Foram longos minutos. Todo o público encarando essa figura com a máscara, em um mix de risos de nervoso e constrangimento com o que se ouvia. Ao tirar a máscara, seu desconforto foi visível. Na roda, ele confessou que ficou com vontade de ir embora durante esse momento. Na tentativa de falar sobre violência contra a mulher, a peça é violenta com essa pessoa do público que, apesar do mascaramento, se sente exposta. Quem sai de casa para ir ao teatro provavelmente tem o coração aberto para ouvir o que é dito no palco. A generosidade é sempre uma via de mão dupla. 

A teatralidade se esvai no piquenique e os aplausos ficam confusos e se perdem no caminho - e “Memórias Impressas” não merece essa confusão. A peça mostra um caminho de pesquisa sólido e de potencial inspiração para o público do ETU, com um entendimento autêntico do que é performatividade e de como oferecer uma experiência estética para o público. Para o festival, o que ficou pelos corredores póstumos foram memórias impressas nos imaginários dos estudantes. Se há alguém por ali interessado em tornar-se um artista-pesquisador, uma boa dica é aproximar-se da Cia. Banzé.

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